A norma, publicada no começo de abril, determina que, a partir dessa idade gestacional, os profissionais ficam impedidos de fazer a chamada assistolia fetal, que consiste na injeção de uma substância que provoca a morte do feto para que depois ele seja retirado do útero da mulher.
O procedimento é respaldado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a partir das 20 semanas de gestação. Logo após a publicação da resolução, especialistas criticaram a norma, alegando que ela vai contra a legislação vigente no País e dificultará o acesso ao aborto legal, em especial para meninas e mulheres em situação de maior vulnerabilidade.
Em reação, o Ministério Público Federal (MPF), a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) recorreram à Justiça pela suspensão da medida por entenderem que a resolução criava "restrições indevidas de acesso à saúde" por parte de vítimas de estupro que engravidassem.
No ultimo dia 18, a Justiça Federal no Rio Grande do Sul concedeu uma liminar (decisão provisória) que suspendia os efeitos da resolução. A juíza federal Paula Weber Rosito, da 4ª Vara da Justiça Federal do RS, que assina a liminar, afirmou que o Conselho Federal de Medicina, por ser uma autarquia, não tem a competência para criar restrição ao aborto em caso de estupro.
O CFM recorreu e, nesta sexta, conseguiu derrubar a liminar. Em sua decisão, o desembargador Cândido Alfredo Silva Leal Junior alega que a questão deve ser melhor debatida e diz que o tema já é objeto de outras ações judiciais que ainda não tiveram um desfecho.
Ele destacou duas Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 989/2022 e ADPF 1.134/2024) que correm na Justiça. A primeira, anterior à norma, questiona uma recomendação expedida pelo Ministério da Saúde durante o governo Jair Bolsonaro em 2022 que também desaconselhava a realização da assistolia fetal após 22 semanas. A outra ação questiona a resolução do CFM em si.
O documento da gestão anterior do ministério questionado em uma das ADPFs foi elaborado pelo então secretário de Atenção Primária do ministério na gestão Bolsonaro, o ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente, que hoje é conselheiro do CFM e foi o relator da resolução da entidade médica.
"Nesse contexto, não me parece oportuno que, em caráter liminar, e sem maiores elementos, o juízo de origem suspenda os efeitos de resolução do Conselho Federal de Medicina que trata de questão que: a) terá impacto nacional; b) está - ainda que sob outra roupagem - submetida a julgamento pelo STF; e c) e necessita de um debate mais amplo e aprofundado", argumenta o desembargador.
"O que se busca agora evitar é que, por meio de decisão singular com eficácia e abrangência em todo o território nacional, seja suspensa norma que guarda relação com matéria objeto de discussão em ADPF, e em relação à qual o STF não deferiu medida cautelar para suspender os efeitos do ato questionado", continua Leal Junior, em sua decisão.
O juiz federal ainda afirmou na decisão que a resolução poderá ser questionada e analisada caso a caso nas instâncias superiores da Justiça.
"Ficando preservadas as situações individuais (em que os interessados poderão levar a questão ao Judiciário e obter tutela jurisdicional específica adequada ao caso concreto), e existindo regulamentação do órgão técnico competente (Conselho de Medicina), não parece prudente suspender a norma técnica em caráter amplo e geral mediante a liminar deferida nesta ação civil pública, parecendo oportuno que a questão seja melhor debatida sempre com a possiblidade que os casos concretos tenham tratamento específico e individualizado", escreveu o desembargador.
Normas sobre aborto legal já tiveram outras polêmicas
No Brasil, o aborto é permitido quando há risco à vida materna, em casos de estupro e de gestação de feto anencéfalo. Não há limite de idade gestacional para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Entidades que defendem o direito das mulheres ao aborto legal argumentam que crianças e mulheres mais jovens e vulneráveis são as que mais necessitam de cuidados em interrupções depois de 20 semanas porque demoram mais a conseguir acesso aos serviços de saúde.
Em fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde chegou a editar uma nota técnica esclarecendo que não há limite de idade gestacional para realização do aborto legal. O documento, no entanto, foi alvo de críticas de parlamentares conservadores e acabou suspenso no dia seguinte pela ministra da Saúde, Nísia Trindade.
No primeiro mês do governo Lula, o ministério anunciou a revogação uma portaria da pasta que dificultava o direito de mulheres vítimas de estupro ao aborto. A regra instituída pelo governo Bolsonaro obrigava os profissionais da saúde a comunicarem a polícia, mesmo sem o aval da mulher, casos de violência sexual que levaram à interrupção da gestação. Na época, especialistas no tema criticaram a norma da gestão bolsonarista por entender que a orientação poderia constranger as vítimas e fazer com que evitassem buscar o direito ao aborto.