Não é operação, é chacina
Por Meia Hora
Publicado em 02/11/2025 00:00:00 Atualizado em 02/11/2025 00:00:00Na última terça-feira, o Rio de Janeiro parou. Todo trabalhador vai lembrar do que precisou enfrentar, principalmente aqueles que moram nos Complexos da Penha e do Alemão, acordados ao som de tiros por uma mega operação policial que resultou na morte de mais de 120 pessoas (o número de óbitos ainda segue em aberto). O governo do estado chegou a notificar que eram 64 mortos, o que já configura uma mega chacina, mas horas depois, esse número dobrou. O último levantamento da Polícia Civil apontava 121 mortos, sendo 117 civis e 4 agentes policiais. No entanto, o número de vítimas continuou a crescer e, segundo a Defensoria Pública, mais de 122 famílias já foram atendidas. A falta de um número correto de mortos e feridos é só o indício das irregularidades dessa operação.
Com corpos enfileirados com sinais de torturas e mutilações, o massacre ocorrido nos Complexos dilacerou famílias e paralisou a vida de milhares de pessoas. Serviços públicos e comércios locais ainda estão fechados, cerca de 120 mil crianças estão sem aula — muitas vivendo em insegurança alimentar longe do local que fornecia a sua única refeição do dia. O cotidiano foi interrompido pela violência estatal. Mais uma vez, sob o pretexto do combate ao crime, o Estado chegou na favela produzindo mais mortes, medo e exclusões.
A operação aconteceu poucos meses após o julgamento final da ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, instrumento jurídico em que o Supremo Tribunal Federal (STF) foi solicitado a estabelecer diretrizes para reduzir a letalidade policial e outras medidas para conter as violações causadas por agentes de estado nas favelas. Recentemente, o STF aprovou parcialmente a ADPF, mas com inúmeras alterações. O Supremo aceitou o plano de redução da letalidade policial apresentado pelo estado do Rio de Janeiro, um documento que descaracterizava os pedidos iniciais feitos por movimentos sociais de favelas e organizações que atuam na defesa dos direitos humanos.
Uma nova segurança pública
Na ADPF 635 original, os movimentos solicitaram medidas como: não realização de operações policiais próximas às escolas e unidades de saúde e a proibição do uso de helicópteros como plataforma de tiro. O STF não seguiu com essas solicitações e, além disso, acrescentou um item que não era objeto da ação, um plano de reocupação territorial das favelas. Todas essas mudanças descumprem a intenção central da ADPF que era a elaboração de um plano para a redução da letalidade policial. Com todas essas flexibilizações, o Estado intensificou as suas ações operando sob uma lógica de guerra e os números já traduzem o custo humano desta escolha.
O desgoverno continua
Só neste ano, sob o comando do governador Cláudio Castro, as polícias do Rio de Janeiro já realizaram mais de 1.800 operações, com 24 delas resultando em chacinas, isto é, terminaram com a execução de três pessoas ou mais. Com as mortes ocorridas no Alemão e na Penha, até o momento, são quase 400 mortes provocadas por chacinas policiais somente em 2025. Os dados foram levantados pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) e apontam o que as favelas já sabem: a única política de segurança dessa gestão são operações que terminam em mortes e sem mudanças efetivas na estrutura de insegurança do Rio.
Mesmo com orçamentos de mais de 15 bilhões de reais, na gestão Castro, os números de crimes como homicídios dolosos, roubo de cargas e letalidade violenta subiram, enquanto o número de armas apreendidas diminuiu, de acordo com levantamento do Instituto Fogo Cruzado. Isso mostra que, ao contrário do que o governador costuma afirmar, a ADPF das Favelas, como foi aprovada pelo STF, não tem limitado a atuação policial. Pelo contrário, os dados revelam que as operações seguem ocorrendo em larga escala e com um alto custo humano, reforçando a necessidade e a urgência do controle e transparência da atividade policial.
ADPF das Favelas
Contrariando 'convicções' e falsas acusações, a ADPF das Favelas vinha contribuindo de maneira importante para a redução no número de mortes causadas por ações policiais antes das alterações que lhe descaracterizaram. Em 2019, ano anterior à primeira decisão do STF sobre a ADPF, o Rio de Janeiro havia registrado 1.814 mortes decorrentes da ação policial, número que foi reduzido drasticamente em 2024 para 699 vítimas, sendo quase três vezes menor.
A megaoperação da última terça evidenciou como decisões relacionadas à ADPF 635 impactam diretamente a vida de pessoas negras moradoras de favelas e periferias. Há indicativos contundentes de que as polícias desrespeitaram obrigações determinadas pela Suprema Corte. A quantidade de mortos por si só já evidencia um uso absolutamente desproporcional. Durante entrevista coletiva realizada na última quarta-feira, o secretário da Polícia Militar do Rio de Janeiro admitiu, por exemplo, que as imagens das câmeras corporais dos policiais envolvidos na operação podem ter sido perdidas devido ao descarregamento das baterias. Apesar disso, as dezenas de corpos enfileirados em praça pública expuseram o que as câmeras talvez não tenham registrado: sinais explícitos de tortura e de execuções sumárias, evidenciados em rostos desfigurados, dedos decepados e corpos amarrados e decapitados.
A flexibilização da ADPF 635, retirando as reivindicações dos movimentos de favelas, representou, na prática, uma brecha para o avanço de uma política de extermínio que movimentos, organizações e ativistas de favelas e periferias historicamente tentam conter. O resultado tem sido o aumento da letalidade policial, da violação de direitos e da insegurança cotidiana nas comunidades. Enquanto o governo insiste em medir o sucesso pela quantidade de corpos, o Rio de Janeiro segue aprofundando seu ciclo de violência e desigualdade.
Reverter esse quadro exige restabelecer plenamente os mecanismos de controle previstos pela ADPF 635 original construída pelos movimentos de favelas. É preciso cobrar mais transparência nas operações e criar instrumentos efetivos de responsabilização por abusos policiais. A concepção de segurança pública no estado do Rio foi historicamente construída para controlar e massacrar as favelas, as periferias e a população negra - um projeto político de extermínio que também serve a interesses eleitorais. É preciso uma política que tenha como finalidade a proteção da vida com inteligência, planejamento e escuta ativa e um Estado que, finalmente, reconheça como cidadãos aqueles que hoje são tratados como alvos. As eleições do próximo ano devem ser o momento de exigirmos esse compromisso: segurança pública com respeito à vida, com justiça e com democracia.
Assinam esse texto: Casa Fluminense, Instituto Decodifica, Observatório de Favelas, Justiça Global, Frente Penha, Centro da Integração da Serra da Misericórdia, Associação de Moradores da Penha, Instituto Papo Reto, Instituto Raízes em Movimento, Fórum do Plano de Ação Popular do CPX, Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial, Fórum Popular de Segurança Pública do Estado do RJ, Mulheres em Ação no Alemão, ONG Voz das Comunidades e PerifaConnection.