Incêndios por toda parte, ao longo de quase um ano inteiro, deixaram como herança, no Pantanal, uma drástica redução nas áreas de conservação. O impacto dos mais de 21 mil focos, contados até outubro, comoveu o mundo, mas vai se estender por muito mais tempo. Não é simples, nem rápida, a tarefa de recuperar as cadeias alimentares e normalizar os períodos de reprodução de muitas espécies, que foram imensamente afetadas.
"Todas as espécies tiveram seus ciclos reprodutores interrompidos", alerta o pesquisador e veterinário Diego Passos Viana, do Instituto Homem Pantaneiro. "Monitoramos agora quanto tempo será necessário para a recuperação do Pantanal". Os mais de 21 mil focos, contados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão do Ministério da Ciência, são mais que o dobro do registrado em 2019 e o maior número desde 1998.
Entre as áreas mais afetadas, nos 150 km² do bioma - só em território brasileiro - estão a Serra do Amolar e o Parque Estadual Encontro da Águas, nos quais o grande desafio é alimentar os animais que sobreviveram, como explica o guia de turismo e gestor ambiental Ailton Lara. "As aves não estão achando sementes, estão magras e comendo folhas, mudando de hábito alimentar para sobreviver", ressalta o guia. E isso interrompe o importante papel que elas têm como dispersoras de sementes. As antas, por sua vez, alimentam-se de pastagem e frutos. "A tendência é que os animais comecem a emagrecer", acrescenta Lara. Especialista em conservação, Paula Valdujo, do WWF-Brasil, revela outro elo dessa cadeia: "Num primeiro momento, os herbívoros são os mais afetados, pois não conseguem ficar longos períodos sem comer". Mas o declínio das populações de herbívoros significa menos alimento para os predadores. "Tudo isso tende a se refletir na redução das taxas de reprodução dessas espécies", adverte Paula. Sua conta, para o futuro, é clara: "Décadas podem ser necessárias para sua total reprodução"
Ligações rompidas
Superado o drama das chamas, os ambientalistas e veterinários começam a medir as graves consequências, ainda por vir, com a destruição dos habitats e a falta de alimentos, que acarretam prejuízos para a cadeia alimentar. "Todas as espécies estão interligadas. E quanto maior a dependência de uma espécie em relação a outra, maior o risco de declínio populacional", avisa Paula. Capins, arbustos, árvores e plantas aquáticas fornecem energia para herbívoros. Estes incluem principalmente invertebrados, peixes, aves, mamíferos. E este grupo, por sua vez, constitui o alimento essenciais de animais predadores".
Ela dá como exemplo prático a onça-pintada, animal predador do topo da cadeia alimentar. Ela se alimenta preferencialmente de herbívoros - como veados, antas, capivaras. "Com a natureza devastada, esses animais terão de buscar alimentos e habitats conservados, para se manterem vivos", diz o veterinário Diego Viana.
O desafio das plantas é outro: não é fácil se restabelecerem em áreas queimadas. Na chamada "fase da rebrota" deve diminuir a disponibilidade de frutos e sementes nas próximas estações reprodutivas das plantas, que passam a depender da dispersão a partir de áreas não queimadas", afirma Paula. Ela lembra outra relação: o fogo comprometeu os ninhos feitos em buracos ocos de troncos ou nos galhos das árvores. "Plantas, que constituem a base da cadeia alimentar e fornecem abrigos para animais, foram consumidas pelo fogo, assim como uma quantidade gigantesca de insetos, aranhas e outros invertebrados."
Estragos na serra
Uma conta feita até 8 de outubro apontava que na Serra do Amolar, onde fica grande parte das unidades de conservação, animais de pelo menos 16 espécies foram encontrados mortos - ali vivem 32 espécies. "Apenas 15% das áreas foram exploradas até aqui. Isso é trabalho para no mínimo dois meses, calcula Diego Viana.
Outra área drasticamente destruída foi o Parque Encontro das Águas, com 93% de sua área atingida pelas chamas, segundo o Instituto Centro de Vida, ICV. Além de mais de 300 onças pintadas - entre elas Ousado, que o Estadão localizou e foi recuperado por veterinários - ali vivem antas, ariranhas, capivaras, jacarés. "Mas o Pantanal é resiliente e vai voltar ao normal em alguns anos", diz o Ailton Lara. "Na região onde atuo, Porto Jofre, tem o tarumã, árvore já com flores e abelhas polinizando, o que representa o renascimento do bioma", acrescenta o gestor.