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Cria da Mangueira, Cartola deixou legado para a favela que vai além da música

Nos 40 anos da morte do grande nome da MPB, pesquisador da Uerj destaca qualidades do sambista que o fizeram se tornar o símbolo da comunidade da Zona Norte do Rio

Cartola e Dona Zica
Cartola e Dona Zica -
É praticamente impossível citar o nome de Cartola e não associá-lo ao Morro da Mangueira. Apesar de ter nascido no Catete, na Zona Sul, foi na favela da Zona Norte, onde chegou com 11 anos de idade, que Angenor de Oliveira entrou para a história como um maiores nomes da MPB. Hoje, 40 anos após sua morte, completados na última segunda-feira, percebe-se que não foi só a música que Cartola deixou como legado para a comunidade.
"De cara, o Cartola traz para a gente uma ideia de elegância, dignidade e de sabedoria muito grande, apesar de toda a precariedade e de todas as situações difíceis que ele se encontrou", destaca Maurício Barros de Castro, doutor em história pela USP e professor-adjunto do Instituto de Artes da Uerj.
O músico teve uma vida bem simples - Acervo da Biblioteca Nacional
Auto do livro "Zicartola: Política e Samba na Casa de Cartola e Dona Zica", resultado de seu mestrado em Memória Social pela UniRio em 2002, o pesquisador enfatiza também o posicionamento político-social do músico. Ele relembra de um episódio na década de 1970, quando o filho adotivo de Cartola tomou uma "dura" da polícia.
"Ele era taxista, estava ao lado do seu carro, quando a polícia chegou. Pediram documento e quando ele foi pegar dentro do carro, os policiais o agrediram. O Cartola e a Dona Zica interviram e também foram agredidos até que o delegado que comandava ação o reconheceu e pediu desculpas. Foi quando Cartola disse 'tudo bem, doutor, entendo perfeitamente. Mas esse tapa que eu levei, quem é que tira da minha face?'", conta o professor.
'CARTOLA DA MANGUEIRA'
Ao longos dos seus 72 anos, Cartola teve mais baixos do que altos em sua vida. Mesmo sendo um dos fundadores da Escola de Samba Mangueira, em 1928, ele ficou afastado da agremiação por um tempo depois que contraiu meningite, em 1946, aos 38 anos. Anos depois, ele se mudou da comunidade, indo morar no Caju.
"As escolas de samba, de uma maneira geral, cresceram muito e os seus fundadores, os sambistas antigos, acabaram sendo afastados daquele espaço de liderança", narra Maurício Barros.
O sambista desfilando em sua escola de coração - Acervo Museu do Samba
No Caju, Cartola ficou totalmente afastado da música. Nessa época, ele chegou a trabalhar como lavador de carros e vigia de prédios. Até que Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica, uma velha amiga de infância e que iria virar seu grande amor, fez um alerta.
"Ele estava totalmente afastado do mercado musical, sem tocar e com o violão encostado num canto. Ela, para convencê-lo a sair dessa situação, falou 'olha, você é o Cartola da Mangueira e não do Caju'", conta o professor.
EMPREENDEDOR
No início do anos 60, ainda fora da Mangueira, Cartola e Dona Zica conseguiram abrir um restaurante, o Zicartola, que foi um dos grandes redutos de sambistas daquela época. Apesar de funcionar apenas por dois anos anos, de 1963 a 1965, em um casarão na Rua da Carioca, no Centro, o local virou ponto de encontro de intelectuais da época.
"O Zicartola surge depois que o jovem empresário Eugênio Agostini pergunta para a Dona Zica qual era o maior sonho dela e ela fala que era uma pensão onde pudesse fazer comida e morar com o Cartola", conta Maurício Barros.
Cartola é um ícone da nossa MPB - Acervo Instituto Moreira Salles
Foi no Zicartola que Paulinho da Viola começou a cantar em público e recebeu seu primeiro cachê, das mãos do próprio Cartola. Outros bambas da MPB passaram por lá, como Carlos Cachaça, Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento e Zé Kéti.
O local também funcionou como um espaço de resistência cultural ao Golpe Militar de 1964, recebendo nomes como Sergio Cabral, Ferreira Gullar, Vianinha, Fernando Pamplona e Teresa Aragão.
"Foi um lugar muito importante para a cultura não só do Rio, mas do Brasil. Foi um espaço de surgimento de sambistas que estavam esquecidos, com o próprio Cartola", enfatiza Maurício Barros.
'ALICERCES DA MANGUEIRA'
Após a empreitada na Rua da Carioca, Cartola e Dona Zica voltaram para a Mangueira. Eles chegaram a deixar a favela, mas sempre levaram de alguma forma a comunidade com eles. Por causa da contribuição de ambos para a região, a família fundou, em 2001, o Centro Cultural Cartola, o Museu do Samba, na principal rua da comunidade.
"O legado fundamental para a Mangueira de Cartola e Zica é que ambos são alicerces da Mangueira, são as famílias que realmente contribuíram para a Mangueira se tornar essa nação, digamos assim", destaca o professor Maurício Barros.
Dona Zica da Mangueira - Acervo Museu do Samba
Na entrada do museu, está uma estátua dedicada ao grande nome do samba, com ele tocando violão. Ao passar pelo local, é impossível não se lembrar da comunidade que foi cantada em verso e prosa pelo poeta das rosas. 
"O morro foi o lugar onde Cartola se firmou como sambista, uma referência da própria Mangueira. Isso é algo que ele levou ao longo da vida, essa relação intensa, íntima e presente na Mangueira", encerra o pesquisador.
Cartola e Dona Zica Acervo Museu do Samba
Dona Zica na escola de coração Acervo Museu do Samba
Dona Zica da Mangueira Acervo Museu do Samba
Cartola, Dona Zica e a Mangueira Acervo Museu do Samba
O músico teve uma vida bem simples Acervo da Biblioteca Nacional
Cartola é um ícone da nossa MPB Acervo Instituto Moreira Salles
O sambista desfilando em sua escola de coração Acervo Museu do Samba
Cartola e Mangueira se confundem Acervo Museu do Samba
Cartola e seu inseparável violão Acervo Arquivo Nacional
Cartola e João Nogueira juntos no Teatro Dulcina Acervo Funarte
Dona Zica, Cartola e membros da velha guarda da Mangueira na celebração dos 70 anos de Cartola Acervo Museu do Samba

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