Favela, religião e racismo: Yuri Marçal celebra especial na Netflix e diz: 'Falo sobre isso porque é o que eu vivo'

Acostumado a fazer as pessoas rirem, Yuri Marçal também tem muitos motivos para estar sorrindo. Criado na Favela da Carobinha, em Campo Grande, o humorista de 29 anos é um dos grandes nomes da comédia no Brasil e vem alçando voos cada vez mais altos. Com mais de um milhão de seguidores no Instagram e lotando shows por todo o país, na última quinta-feira, ele se tornou o primeiro humorista negro da América Latina a ter um especial de humor na Netflix, uma das maiores plataformas de streaming do mundo. Falando em feitos históricos, no domingo passado (29), o artista também se tornou o primeiro comediante a fazer um stand-up solo no Theatro Municipal de São Paulo. Ao MEIA HORA, Yuri relembrou sua vivência em comunidade, falou sobre religião, família, carreira e ainda deu detalhes sobre seus próximos projetos, incluindo um filme onde ele interpreta Mussum, o eterno Trapalhão.

"A Carobinha é onde foram criados todos os meus valores, tanto por parte da família, quanto por parte de amigos. Porque eu não nasci lá, nasci em Vaz Lobo, minha família é de lá, da Serrinha, ali em Madureira, e eu cheguei com 9 anos na Carobinha. Só que desde antes de eu nascer, minha família já ficava na Carobinha, porque o terreiro da minha mãe fica lá. Então, a gente sempre tava indo pra lá, e mesmo morando em Vaz Lobo, e depois morei em Coelho Neto também, eu sempre tava aos fins de semana no terreiro. Depois a gente foi de fato morar lá, quando eu fiz 9 anos, e ficou até eu virar adulto. Tô lá até hoje. Tô toda semana lá. Fico com meus filhos", contou ele, que é candomblecista e filho de uma Iyalorixá.

Acostumado desde pequeno com a vivência em comunidade, Yuri falou sobre as principais dificuldades que enfrentou por morar na Carobinha.

"As dificuldades são as mesmas de qualquer comunidade do Rio. O lance do perigo, guerra que rolava às vezes e as coisas que tão sempre rolando. A falta de saneamento, falta de estrutura, esse lance todo que complica. As ruas que não são asfaltadas, esgoto a céu aberto. Esse lance todo que a gente sabe que não era pra existir em lugar nenhum. Eu saía pouco, por conta do medo que minha mãe sentia, de eu ficar frequentando vários lugares e acontecer uma coisa ruim", disse ele.

Além da falta de saneamento básico, o humorista destacou outro fator que para ele a comunidade carece.

"Como artista, obviamente eu vou pensar no investimento cultural. Porque eu sei que lá, como em toda favela, tem um polo cultural, um material humano gigante, pessoas talentosíssimas. Ótimos dançarinos, cantores, MCs, DJs, jogadores de futebol, indo para o lado do esporte. Então, esse investimento ali, como em todo o lugar do Brasil, é uma coisa que falta muito."
Mesmo com as dificuldades, o humorista destaca os diversos aprendizados que teve por crescer na comunidade, principalmente por conta do convívio com a família, que diz muito sobre o seu talento pra comédia.

"O convívio de amigos e família, sempre foram coisas, e até hoje, muito divertidas. Muita história boa e engraçada, baile, essas coisas que a gente de favela vive. E os valores positivos que a favela te traz são muito bons pra vida. Como homem, como artista e como pai. Então tem muita coisa positiva nesses valores que a favela te traz. Um exemplo, acho que a favela tem uma coisa que eu sempre falo, que é de resolver os problemas. Tipo, não deixar aquela parada no ar, isso pelo menos pra mim funcionou bem. Então se eu tiver algum problema, eu fico na ansiedade de resolver da melhor forma. E outra coisa que tem também, e isso vem da minha família, é o lance de se cuidar. O cuidado um com o outro. O cuidado com o teu vizinho, a preocupação se tá faltando alguma coisa, de se ajudar. Isso eu não vejo em outros lugares fora da Carobinha, fora da favela como um todo. Acho que nas favelas em geral tem isso," listou ele, antes de lembrar outra coisa que o faz sempre voltar na favela.

"Tem muita coisa que eu falo, que só tem lá. Um exemplo bobo é que toda vez que eu vou lá, eu tenho que dar uma "pancadinhas" num x-tudo. Não tem jeito. Porque agora morando na Zona Sul, o daqui é horroroso, além de extremamente caro (risos)."

A vivência na comunidade teve impacto direto na forma com que Yuri Marçal faz comédia. O humorista explica que boa parte dos seus textos são baseados em suas experiências de vida.

"Minha vivência em comunidade traz o meu jeito de falar. Gíria, o jeito mais carioca, suburbano, de favela de falar. Uma coisa, que no meu início da comédia, eu tinha um certo receio. Fazia um show, por exemplo, no Fashion Mall, que fica em São Conrado, ou São Paulo, esses lugares mais "burgueses". Eu pensava: 'será que a galera vai entender se eu chegar falando com meu jeitão carioca?'. Mas sim, vai entender. O próprio Thiago Ventura acabou sendo uma referência nisso de trazer a favela pro palco. Então tá muito no meu jeito de falar, de contar história. No jeito que eu observo o mundo, o jeito de uma pessoa também, que você vê logo que é criada em favela. Tá muito vivo isso. Então a observação do meu material de texto sempre parte desse lugar."

Se Yuri fala constantemente de família em seus shows, é porque ela é parte essencial na sua trajetória na comédia.

"Eu tinha 22 anos quando fiz meu primeiro show (stand up) e dali não parei mais. Tô há seis anos aí. E a minha família inteira é muito engraçada. Meus primos e tias... Então eu sempre vivi num meio muito cômico. A gente lida com tudo, com o olhar da comédia, em 100% das coisas. Não conseguimos conversar sério durante muito tempo sem fazer uma piada. E isso desde que eu me entendo por gente, sempre foi assim. E eu ficava observando isso e pensava: 'Caraca, não é possível que ninguém vai ganhar dinheiro com isso.' Aí quando o stand up começou a crescer, eu me apaixonei. Sempre fui fã de comédia. Mas não me imaginava fazendo aquilo, não tinha autoestima. Até porque eu acho que sou a pessoa menos engraçada da família. E aí depois que eu cresci e comecei a fazer teatro, tudo que eu fiz foi voltado pra comédia. Muito por influência da minha família e tinham as pessoas que eu assistia também."

Apesar do sucesso de hoje em dia, para começar a focar 100% no humor, Yuri Marçal conta que desistiu de concluir a faculdade de direito quando já estava na reta final.

"Então, só faltava o TCC. Indo pro último período eu tranquei a faculdade. Aí todo mundo ficou: 'mas por que?', Cara, eu não aguentava mais. Depois eu soube que tinha estágio de dois anos, mais o TCC que todo mundo sabe que leva um tempo e te leva uma saúde mental boa. Aí eu já tava fazendo comédia há dois anos. Tranquei a faculdade em 2018. As coisas tavam começando a acontecer devagarzinho. Tranquei porque minha cabeça não tava legal. Não tava bem mesmo. E foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida."

Contudo, Yuri conta que a decisão de largar a faculdade não foi muito bem aceita pela mãe no início, já que ela sonhava em ver o filho formado.

"A reação dela foi péssima. Porque minha mãe sempre teve o sonho de ter um filho formado e esse filho era eu. Porque só tem eu. Então eu sabia que trancar a faculdade seria o fim pra minha mãe. E foi bem pesado. Por isso, eu demorei bastante para tomar essa decisão. Só por isso, inclusive. Porque ia ser uma decepção imensa. Aí eu fui conversar com ela que trancaria a faculdade, obviamente ela não reagiu bem. Mas hoje, pô, não tem como, minha mãe é incrível. Ela tá 100% comigo. Me ajuda e pergunta, vai pros shows e se emociona muito", disse ele, que sempre faz questão de exaltar em seus shows a importância da dona Marcia Marçal, que como muitas outras brasileiras, foi mãe solo.

"Além de um projeto que eu tenho, que ajuda mães solos, eu tô sempre participando ativamente do Mães da Favela, da CUFA, além de ajudar pessoas da própria Carobinha. Eu vejo que isso é uma questão do país e sei da dificuldade. Eu tive ainda o privilégio de ser criado por duas mães. Mas ainda assim, minha mãe, com o pouco dinheiro que ela tinha, investiu ali na minha educação, na minha saúde. Pra eu ter uma base, e isso obviamente refletiu em tudo na minha vida. Por exemplo, nessa coisa de largar a faculdade pra fazer comédia, que era uma coisa que minha mãe nunca imaginou na vida dela, veio uma pressão minha mesmo. De mim pra mim (risos), que foi: 'eu preciso dar certo nisso aqui.' Porque a gente não tem esse luxo de poder falhar na escolha que a gente fez pra nossa vida. Então obviamente isso pesou muito."
Além de ser mãe de Yuri, Marcia Marçal também é mãe de santo e ajudou a formar um dos pilares na vida de seu filho, a religião.

"Religião pra mim é tudo. É meu acolhimento, meu acalanto, minha base, minha base de pensamento também e principalmente a minha fé. É o que me move a acreditar em muita coisa. O que move muitos dos meus princípios vem do candomblé. Muitos dos meus objetivos eu dedico ao candomblé, eu dedico a Exu e ao meu pai Xangô. Porque é um conforto que só quem é sabe, não consigo nem descrever em palavras."

Falando em religião, diferentemente de outros humoristas, Yuri Marçal não se priva de falar sobre intolerância religiosa, racismo e outros temas polêmicos. O artista ressalta a importância de debater esses assuntos através do humor.

"Eu falo sobre esses temas, na verdade, não é nem pela polêmica ou pra gerar engajamento. É porque é o que eu vivo. Eu sou preto, então eu falo sobre ser preto. Não digo nem que é mais fácil falar disso, porque pela polêmica do assunto a galera já fica meio 'eita'. Mas é a minha realidade. Eu sou macumbeiro, então vou falar sobre macumba. Eu sou pai, então vou falar sobre as minhas crianças. Os assuntos que estão dentro da minha realidade eu consigo elaborar melhor os pensamentos dentro da comédia. E é importante tá falando sobre isso, porque são assuntos que permeiam a sociedade e todo mundo vai se identificar ou reconhecer. Mas a minha intenção é que as pessoas riam das piadas. É isso."

Com uma rotina cada vez mais corrida, Yuri vem tendo que se desdobrar para se dividir entre os papéis de pai, noivo e também artista.

"É uma correria. Além de gravação de séries e filmes, que todo mundo sabe que ocupa um tempo gigante na sua vida, eu trabalho com shows e viajando. E as crianças estão em idade escolar. O Ícaro, que é meu filho mais velho, de 7 anos, já tava na escola faz um tempo. E a Yuna, desde o começo do ano, tá estudando também. Então o tempo que eu tinha com eles, que era dia de semana, também foi reduzido. O que eu faço é do nada brotar na escola e pegar no dia de semana. Graças a Deus eles estudam perto, aí eu pego pra dar um rolezinho de noite, pra no dia seguinte eles estarem na escola de novo. Às vezes eu levo pra shows. Quando eu tô no Rio é certo deles estarem comigo. Principalmente nos fins de semana, o que acontece com uma frequência bem boa. Mas é bem doido, bem complicado. Ainda mais eu, que tive pai ausente, tentar organizar esse tempo. Cada vez tá ficando mais tranquilo pra eu poder ficar esse tempo com as crianças. Porque elas gostam muito. A gente se diverte muito. Além da parte de noivo, da Jennifer também. Facilita pelo fato da gente morar na mesma casa, mas dificulta pela gente ter carreira parecida, ela também trabalha bastante. Então a gente tenta sempre otimizar esse tempo. Além do comprometimento religioso que eu também tenho. Faço muita coisa, galera (risos). Ela, Jennifer, é o real sentido de parceira. De fechamento, como a gente fala aqui no Rio. Meu fechamento total, pra tudo! A gente se dedica muito um pro outro. E é uma relação muito honesta, por conta disso", contou ele, que é noivo da atriz e produtora Jennifer Dias.
Especial na Netflix e show no Theatro Municipal

As últimas semanas foram marcantes para Yuri Marçal, que atingiu dois feitos históricos. Além de estrear na quinta o show Ledo Engano na Netflix, se tornando o primeiro humorista negro da América Latina a ter um especial na plataforma de streaming, no domingo passado (29), ele levou seu novo stand up, o "Nem se Minha Vida Dependesse Disso", ao Theatro Municipal de São Paulo. Com isso, ele se tornou também o primeiro comediante a fazer um show solo em um dos palcos mais tradicionais do país.

"Isso tá me emocionando até agora. Nem penso muito sobre isso de abrir portas porque parece que já vem uma responsabilidade junto. Mas o que eu trabalhei e trabalho pra esses dois feitos, é brincadeira. Então eu tenho total consciência, e eu digo isso sem falsa modéstia, que eu mereço essas duas consequências positivas do trabalho. Porque é muito emocionante, claro. É uma responsabilidade, com certeza. Mas os dois foram executados com o melhor que eu pude dar. E eu não tenho dúvida, obviamente, de que vai ficar pra história. Não tem o que fazer. Primeiro comediante nessas duas situações aí. Vai ficar pra história da comédia, da minha história e da minha família, história de quem admira esse trabalho, história dos lugares (Netflix e Theatro Municipal). E a importância disso é que é possível, dá! Se eu tivesse agora 14 anos, quando eu já era fã de comédia, e visse o Yuri Marçal fazendo isso, eu ia falar: 'Pô, mané. Dá! Vai que se pah dá, hein… É possível!'"
O artista aproveitou para convidar todo mundo a assistir seu especial na Netflix, dando alguns detalhes sobre o que cada um pode esperar.

"É o meu primeiro especial, meu primeiro show solo. Ele vem com um compilado de ideias e piadas que eu já contava. Eu vou traçando essa linha do tempo. Falo um pouco sobre a questão racial, bem pouco. Fala mais sobre a minha família, muito sobre a minha mãe, começo falando sobre ela. Falo sobre filho. Falo bastante sobre religião. Tem um bom tempo falando de macumba, sobre Jesus também, e um pouquinho de política. Então ele tem uns assuntos que a galera vai falar: 'Eita!' Mas quando você vê, já tá no assunto e tá rindo. Eu tô tratando de uma forma bem bacana. Foi uma noite linda gravar esse especial. Foi no ano passado. E eu acho que o que a galera pode esperar é se divertir com as histórias. Têm muitas histórias que você vai falar, esse Yuri… Sabe aquele amigo que tu fala: 'Não tem jeito esse cara? É o jeito dele, não adianta'. Então acho que a galera vai se aproximar bem da história e se divertir."

Além de fazer stand up, Yuri também vem ganhando cada vez mais papéis de destaque em sua carreira de ator. Tendo estreado nas telas com a série Homens?, ele integrou o elenco do filme Vale Night, exibido em março nos cinemas. Além disso, o artista teve a chance de interpretar a fase jovem de seu ídolo Mussum, em um longa bastante aguardado, que segundo ele deve ser lançado em breve.

"Cara, não sei exatamente quando o Mussum - O Filmis sai. Sei que não vai demorar. Vale Night gravamos antes da pandemia. Foi maravilhoso, um elenco incrível! Tava no cinema e agora tá no Star Plus. E o Mussum, esse eu posso dizer que foi um presente. Foi a realização de um sonho. Porque eu sempre fui e sou até hoje obcecado pelo Mussum. Pela história de vida, o artista, o sambista e o humorista Mussum, que aí me puxa completamente. A paixão dele pelo futebol, embora a gente não torça pelos mesmos times. Então, eu tenho uma identificação muito forte com toda a história do Mussum. A ligação religiosa também. E poder receber esse presente de interpretar esse cara, eu até me arrepio falando. Foi uma coisa, além de tudo, espiritual demais. A própria família dele, os filhos, falaram comigo que era outra coisa, que não era eu, sabe? Foi muito importante. Me agregou em tudo conhecer a fundo a história dele. Da infância até a morte. E levar isso pra tela vai ser muito legal. Eu tô bastante ansioso. Gosto nem de falar muito que a barriga já dói."

Grato por todas as coisas boas que vem acontecendo em sua vida, Yuri Marçal também falou sobre alguns de seus sonhos.

"Já sou muito realizado, não penso muito no futuro porque já sou muito abençoado pelos deuses. Mas eu quero trabalhar mais e mais. Quero fazer outros shows solos. Esse novo, que eu apresentei no Theatro Municipal, tá bem legal. É um desabafo muito bonito e muito mais engraçado. E produtos meus. Penso sempre em tá encabeçando coisas. Sonho com produtos meus, seja séries, filmes ou stand up."

Por fim, o humorista falou sobre seus próximos projetos, aproveitando para contar em primeira mão que deve lançar em breve um material no seu canal do YouTube.

"Projeto novo que eu posso falar é essa turnê que já tá acontecendo, que é do show novo, o "Nem Se Minha Vida Dependesse Disso". E a gente vai lançar um produto, que inclusive é sobre esse show solo novo, que vai sair em breve no meu YouTube."