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'O maior vexame do futebol brasileiro'

O 7 a 1 para a Alemanha, na Copa de 2014, é uma ferida que ainda não cicatrizou. Mas, assim como o vice-campeonato para o Uruguai em 1950, no famoso Maracanazo, está longe de ser o maior vexame do futebol brasileiro. Nada se compara ao roubo da Jules Rimet, taça que a Seleção conquistou de forma definitiva após o tricampeonato mundial em 1970, mas que foi roubada, na sede da CBF, em 19 de dezembro de 1983, e derretida dias depois. A menos de um mês dos 50 anos da façanha de Pelé & Cia. nos gramados mexicanos, o jornalista Wilson Aquino, de forma precisa, desvenda, em 'O roubo da taça — preconceito, tortura, extorsão', o mistério sobre o sumiço do Santo Graal do futebol. Leitura obrigatória para quem não sabe o que aconteceu e para quem acha que sabe.

Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre o roubo da Jules Rimet?

Sempre achei que faltava no mercado uma obra que contasse direitinho como foi essa história. Como esse ano a gente completa 50 anos da conquista da Jules Rimet, surgiu a ideia de botar isso a limpo, contar como foi, o que houve, o que não houve, passar pelos personagens, contar um pouco da trajetória de quem acabou se envolvendo nesse caso. Havia pouca informação sobre o fato, e, quando tinha, era uma coisa meio debochada sobre essa grande tragédia nacional.

Muitas novidades?

Para quem só ouviu falar da história, tudo é um pouco novo. Todo mundo sabe que a taça foi roubada e derretida, mas temos que levar em conta que isso aconteceu na época da ditadura, onde a imprensa não teve acesso às informações, pois tudo era sigiloso. Ela se baseou só no que a polícia falou, em entrevistas muito mal dadas. Ou seja, tudo é um pouco novo, a forma como foi planejado e executado o roubo, pago em dinheiro e com cheque pré-datado.

Mas a própria polícia 'bateu cabeça', certo?

Houve uma rixa entre a Polícia Federal e a polícia do Rio, pois logo que a taça foi roubada quem deveria assumir a investigação era a polícia estadual. Só que, como vivíamos na ditadura, o então ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, determinou que a PF se apossasse do caso e isso causou certo conflito entre as polícias.

Em qual ponto da narrativa entra o preconceito?

O livro fala do preconceito que as pessoas negras sofreram na época. A polícia revelou que o crime fora praticado por dois homens negros e no fim da investigação isso não se confirmou. Na verdade, todos os envolvidos eram brancos.

E a tortura?

A gente fala da tortura porque, naquela época, não se podia falar nela. Mas houve muita tortura por parte principalmente da Polícia Federal. Inclusive, ela chegou a torturar as pessoas certas, porque os condenados, os culpados, acabaram sendo pegos, mas só confessaram o crime mediante tortura.

E a extorsão?

A banda podre da polícia chegou aos ladrões antes da investigação oficial. Então, houve a extorsão. Tudo isso baseado em fatos reais, no processo judicial. Eu tive acesso a todas as investigações, aos depoimentos, além de ter conversado com pessoas que participaram da investigação.

A quais conclusões podemos chegar sobre o roubo?

Houve negligência da CBF em relação à guarda da taça. A sala de troféus da entidade (a sede era na Rua da Alfândega 70, no Centro) ficava no terceiro andar do prédio. Só a Jules Rimet e outras três taças estavam no nono andar, onde ficava o gabinete da presidência, o salão nobre e a sala de reuniões. Eles colocaram a taça em uma vitrine, em um nicho, e a exibiam para os cartolas ou para quem ia visitar o presidente da CBF, Giullite Coutinho. Havia uma sala que tinha um cofre blindado, mas a taça era exibida neste nicho, com vidro a prova de bala, só que a moldura que segurava esse vidro era de madeira. Os ladrões conseguiram remover essa moldura com uma chave de fenda.

Então a CBF pode ser responsabilizada pelo roubo?

Houve um grande erro de planejamento na hora de se montar essa 'caixa forte' para manter o objeto mais sagrado do futebol mundial guardado na sede da entidade. Por ser uma taça que tinha uma aura divina, o Santo Graal do futebol deveria ter sido melhor protegido.

Podemos dizer que se trata de um dos maiores vexames na história do futebol brasileiro, pior que o 7 a 1?

O 7 a 1 foi em campo. O roubo da Jules Rimet foi um vexame maior. Durante 40 anos, as grandes potências do futebol mundial quiseram ter a posse definitiva da taça. A gente teve essa posse e depois a perdeu de forma imprudente e inacreditável.

Então é uma mancha eterna na história do Brasil?

Sim. Afinal, abalou a reputação do Brasil. Era um objeto muito importante para ter sido tão negligenciado. Foi uma tragédia ímpar. Conversei com alguns jogadores, e, mesmo depois de a CBF ter feito uma cópia da taça, eles reclamavam. Diziam que a CBF poderia fazer quantas quisesse, mas nenhuma dessas réplicas teria o suor deles, as digitais deles, o sangue deles. A taça perdeu um pouco de sua divindade. Desde que ela foi roubada e foi feita outra, você não vê nenhum evento feito pela CBF para exibi-la. Pelo contrário, eles nem tocam no assunto Jules Rimet, se sentem desconfortáveis ao falar sobre isso. Agora temos uma réplica, e réplica tem um monte. Eu tive a oportunidade de ter a réplica do Pelé em mãos.

A Jules Rimet passou por algumas "desventuras" antes de ser derretida. Seria uma taça destinada a fim tão trágico?

Há um capítulo à história da taça, desde a sua criação, em 1929, pelo artesão Abel Lefleur. Cito o episódio do italiano Ottorino Barassi, vice-presidente da Fifa, que a manteve escondida sob seu colchão durante a Segunda Guerra Mundial, pois os nazistas queriam roubar tudo que era ouro. Houve, também, o primeiro roubo, pouco antes da Copa da Inglaterra de 1966, quando ela era exibida numa galeria de artes em Londres, e foi recuperada uma semana depois, pelo vira-latas Pickles. Mas não acho que a taça estaria fadada à tragédia. Devido a sua divindade, seu destino deveria ser um santuário, onde ela pudesse ser venerada pelo povo brasileiro. Ia ter romaria.