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Professores invadem praças do Rio para dar aulas de graça

O Brasil ainda tem 11,3 milhões de pessoas maiores de 15 anos que não sabem ler ou escrever, uma taxa de analfabetismo de 6,8%, segundo o IBGE

Professores invadem praças do Rio para dar aulas de graça
Professores invadem praças do Rio para dar aulas de graça -
"A partir de agora, você consegue ler sozinha todos esses nomes", diz pausadamente e em voz alta Edna Pinheiro, acompanhando com o dedo indicador a frase que acaba de escrever.

Aos 86 anos e apesar de trabalhar em uma biblioteca, mal sabe ler. Mas com o projeto "Adote um aluno", que oferece aulas particulares gratuitas em praças públicas do Rio de Janeiro, ela afirma estar "aprendendo algo" pela primeira vez.

"Nunca é tarde demais. Vou estudar e trabalhar enquanto eu posso. Porque a gente fica sem ver, você fica velha, não sabe ler, não sabe fazer nada. Aí, se eu souber ler, pelo menos já fica uma velhinha que enxerga e lê", disse, entre risos, durante entrevista à AFP no coração de Botafogo, zona sul da cidade.

Edna divide a praça com outras pessoas de sua idade, mas também com estudantes de ensino fundamental e médio que aprendem matemática, inglês, biologia e física, reunidos em grupos de no máximo três pessoas, supervisionados por professores.

Adote um aluno
Tudo começou por iniciativa do engenheiro Silvério Morón, de 64 anos, que depois de muito tempo dando aulas particulares para alunos de colégios privados, decidiu compartilhar seu conhecimento com aqueles que não podiam pagar.

"Tiro dúvidas de matemática e física (grátis)", diz a placa que pendurou em março de 2018 em uma mesa de alvenaria da praça Mauro Duarte, em Botafogo.

Vários dias se passaram até o primeiro aluno aparecer. Mas quando aconteceu e, graças a uma foto que viralizou nas redes sociais, rapidamente dezenas de estudantes apareceram em busca de apoio e de professores voluntários.

"o baixo nível da educação acarreta alto índice da violência e de desemprego", disse Morón, um homem alto e sorridente, que já foi entrevistado por emissoras de TV e jornais.

Em um ano e três meses, expandiu seu projeto aos bairros de Flamengo, Copacabana e Grajaú e registrou quase 300 alunos, uma cifra que inclui quem foi uma única vez para tirar uma dúvida ou aqueles que assistem regularmente para melhorar o desempenho escolar.

Como Camila Ribeiro, de 11 anos.

"Ela quebrou o braço, ficou 60 dias com gesso na mão que escreve. No primeiro bimestre, estava com tudo vermelho porque a escola ficou de ter uma mediadora para ajudá-la a escrever, mas não teve", contou à AFP sua mãe, Marta Ribeiro. Após um mês de aulas de apoio em português e matemática, o desempenho da menina "melhorou muito", assegura.

Adultos aprendendo a ler
O Brasil ainda tem 11,3 milhões de pessoas maiores de 15 anos que não sabem ler ou escrever, uma taxa de analfabetismo de 6,8%, segundo o IBGE.

Maria de Jesus Rangel, de 77 anos, fez parte deste grupo durante muito tempo, até que foi "adotada" por uma das professoras do projeto.

"Estou fazendo alfabetização porque eu não tive oportunidade (...) Na minha época os pais não botavam os filhos para estudar. Era muito difícil na roça. Eles achavam que mulher era para tomar conta de casa. Homem ia cortar cana, e a mulher era dona-de-casa. Só aprendi a trabalhar em casa. Estudar para que? Era o que eles diziam", conta, enquanto termina uma de suas três aulas semanais.

"Tenho dois filhos que são formados, agora é a minha vez", orgulha-se.

Edna Pinheiro tem uma história parecida. Embora quando criança tenha estudado alguns anos na escola, sua prioridade era o trabalho e não aprendeu a ler e escrever com fluidez.

"Quando era criança, fui seis anos para escola. Mas voltava da escola e já tinha saco de café me esperando para levar pra roça. Tinha que levar enxada, capinar, cortar milho, cortar cana. Quando voltava para casa, eu estava cansada, tomava banho, dormia e outro dia ia pra escola, mesmo sem saber. Aí não da pra gente acompanhar", lembra.

Um "tsunami" na educação
Morón evita falar de política e prefere não opinar sobre os recentes protestos maciços de estudantes e professores contra o governo ultraconservador de Jair Bolsonaro.

"O objetivo do projeto não tem nada a ver com o governo, nem com antigo, nem com o atual", assegura.

A ideia surgiu com o desejo de melhorar o desempenho dos alunos.

"Eu não quero ficar questionando o poder público. Eu quero ajudar o poder público. O projeto tem esse intuito também", afirma, embora admita que os professores da rede pública deviam ganhar melhores salários.

"Eu sei que ainda é uma gota no oceano. Mas se houver adesão de outros voluntários... Qual é o futuro que o projeto quer? Que cada bairro da cidade do Rio de Janeiro tenha uma praça desenvolvendo a educação. Mas a gente precisa da adesão dos moradores de cada bairro. Que desçam para a praça compartilhar conhecimento", imagina.

"Hoje é uma gota no oceano. Mas pode virar um tsunami da educação", completa.