Rio - Operações, confrontos e moradores privados de sua liberdade. Na semana em que completou seu 55º aniversário de fundação, a Cidade de Deus vê suas ruas serem fechadas mais uma vez por tiroteios. Segundo o levantamento da plataforma Onde tem Tiroteio (OTT), o bairro foi o terceiro a apresentar o maior número de troca de tiros em fevereiro, com 13 ocorrências, abaixo apenas da Praça Seca, também na Zona Oeste, e da Tijuca, na Zona Norte.
Nesse cenário, quem reside no local só pensa em pedir um presente: "O presente que eu acredito ser a vontade de todo morador da CDD é o fim dessa guerra. Que as autoridades mudem sua política de enfrentamento, onde as vítimas em sua maioria são aqueles que em nada tem a ver com o crime", comenta a artista plástica e ativista social, Rosalina Brito, de 62 anos, moradora da comunidade desde a criação da favela, em 1966.
"Desalojados de uma favela em Inhaúma por causa da grande enchente daquele ano, eu, com 7 anos, e minha família fomos trazidos para cá. Era tudo com ruas de terra. Nossa casa ainda nem tinha vaso, pia, essas coisas. Lembro que eles davam essas coisas num barracão que ficava no centro da cidade e meus pais é que iam colocando aos poucos", lembra.
Segundo a artista plástica, além do fim da violência causada pelos confrontos, a comunidade também clama por ações sociais e de educação que cheguem para ficar. "Coisas pontuais só resolvem por um tempo. A mudança tem que ser para as próximas gerações. Cadê a escola de ensino médio, que está aí sendo construída há quase dez anos", disse.
Sem segurança, sem brincadeiras
Divulgado ontem, o levantamento da plataforma OTT apontou um aumento de 58,71% nos disparos com arma de fogo em todo o Estado do Rio no mês de fevereiro frente ao mês de janeiro de 2021. De acordo com o relatório, a Praça Seca, seguida pela Tijuca e a Cidade de Deus, que recebeu ontem uma operação da Polícia Militar, lideraram o ranking.
Gisela Lopes, 60, responsável pela Frende CDD, grupo que promove ações no combate à covid-19 na comunidade, também chegou na CDD no início da ocupação e se recorda com alegria do tempo em que a comunidade não sofria tanto com a violência. "Era outro tempo. Podíamos brincar na rua, de pique esconde, cabra-cega, pique pega. Até ir buscar água, porque lá não tinha encanada era diversão. Hoje, infelizmente, nós temos medo de deixar as crianças saírem de casa", lamenta a moradora da favela.
Realidade na pandemia
Para Carlos Antônio Moura, um dos responsáveis pelo projeto Cadeira Solidária CDD, que fornece cadeiras de roda a pessoas de baixa renda com deficiência ou mobilidade reduzida, dos 55 anos da favela, o último ano afetado pela pandemia deve ter sido o mais difícil. "Nós somos um povo que sorri, que gosta de contato e esse ano foi de resguardo. Para nós, que dependemos de ir às ruas para ajudar foi ainda mais complicado", relembra o morador da comunidade.
Segundo Carlos, a ausência do poder público agravou a situação da pandemia na comunidade, que registrou números altos de contaminação pela covid-19, principalmente no início da pandemia. "Acho que falta eles virem aqui sempre, não só quando querem votos", disse.
De conjunto a bairro
Inaugurada em 1966, a CDD é hoje um bairro, mas, em sua origem, era um conjunto habitacional, em Jacarepaguá. A construção foi pensada como estratégia urbanística para remover os moradores das favelas da Zona Sul, na década de 1960, pelo então governador do Rio, Carlos Lacerda. Entre as favelas estavam Praia do Pinto, no Leblon, Parque da Gávea, na Gávea, Ilha das Dragas e Catacumba, na Lagoa, e Rocinha. Uma das possíveis origens do nome é que teria sido uma sugestão do então Secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Arcebispo Dom Helder Câmara.