Estatutos de umbanda são documentos que estruturam o funcionamento de cada terreiro, o que inclui administração (diretoria, conselho), fins (religiosos, culturais, beneficentes) e normas de conduta (caridade, não cobrança por atendimento espiritual).
Do ponto de vista historiográfico, são registros que permitem conhecer melhor realidades locais, experiências de um grupo social específico e dinâmicas de um contexto sociopolítico mais amplo.
“Esses estatutos têm grande importância histórica. O acervo tem desde itens dos anos 1940 e 1950, até aqueles estatutos extremamente interessantes do ponto de vista político e social, elaborados em plena ditadura militar”, explica Fernandez.
“Eles mostram como a umbanda se defendia dentro da estrutura militar, quais elementos eram utilizados para se fortalecer naquele contexto. Isso ajuda a elucidar o comportamento das lideranças da época, inclusive disputas internas e divisões patrimoniais”, complementa.
A relação entre umbanda e ditadura militar é apenas uma das possibilidades de investigações que podem ser feitas a partir dos documentos oriundos do Centro de Estudos e Pesquisas de Cultura Iorubá, fundado em 1977 por Fernandez.
O colecionador explica que começou a reunir todo o material quando entrou para o candomblé (depois migraria para a umbanda). Com o tempo, ele se tornou uma referência em religiões de matriz africana, sendo convidado a participar como conselheiro da criação de estatutos de terreiros no Rio, e recebendo visitas de dirigentes religiosos e babalaôs de outros estados.
Conforme o acervo aumentava, percebia que reunia algo que ia além do desejo pessoal por conhecimento. Ele tornara-se “guardião temporário” de registros coletivos. Apesar dos documentos valiosos que tinha em mãos, Fernandez conta que, antes do aceite do Arquivo Nacional, tentou, sem sucesso, doar o acervo para várias instituições.
“Chegou um momento em que o espaço ficou pequeno e percebi que o material estava acondicionado de forma inadequada. Ofereci o acervo à Biblioteca Nacional. Até hoje não recebi resposta. Tive contato com o Museu da Imagem e do Som, e aconteceu a mesma coisa”, diz o antropólogo.
“Também ofereci o material ao Instituto Moreira Salles, e eles foram claros ao dizer que esse tema não lhes interessava. O que achei estranho, porque esse tema hoje está bastante desenvolvido através de livros, vídeos, filmes, e também por estudiosos no exterior”, complementa.
Detalhes do acervo
O primeiro lote do acervo foi doado para o Arquivo Nacional em 1999, e é composto por revistas, recortes de jornais, informativos, convites, material bibliográfico, folhetos e materiais de campanhas eleitorais. Entre os temas abrangidos, arte e cultura negra, luta contra discriminação racial, saúde da população negra e feminismo. Os destaques são os materiais relacionados ao senador Abdias do Nascimento.
Esse primeiro lote já contém instrumento provisório de pesquisa e está disponível na instituição, no Rio de Janeiro, para consulta presencial.
O segundo lote, doado em 2025, reúne documentos textuais sobre religiosidade afro-brasileira, com destaque para registros sobre a Umbanda e para a atuação de organizações ligadas a tradição. Há revistas, jornais, recortes, materiais didáticos, convites, regimentos e estatutos de instituições, hinos e partituras, certidão de batismo religiosos, cartazes, correspondências institucionais, cartazes, folhas volantes e propagandas.
Os itens do segundo lote ainda estão sendo tratados pela Divisão de Processamento Técnico de Documentos Privados do Arquivo Nacional (Didop). E não podem, por enquanto, ser acessados pelo público. A previsão é que isso ocorra em 2026.
“O processo técnico envolve identificar, colocar um código de referência, dar uma identidade para cada documento, para que depois ele não se perca. A descrição item a item vai para o Sistema de Informações do Arquivo Nacional (Sian). Também precisamos condicionar e guardar o material em caixas para que dure mais. E, se possível, digitalizar”, explica Túlio Saeta, técnico especializado da Didop.
Há ainda a expectativa de doação de outros materiais audiovisuais. Entre eles, um conjunto de fitas cassete e fitas de rolo, com gravações feitas in loco pelo antropólogo Fernandez em terreiros no Rio de Janeiro, em Salvador, na Nigéria e em Benin. Estes dois últimos países são berços da cultura iorubá, de grande influência sobre as religiões afro-brasileiras.
E fitas VHS que Fernandez trouxe de Benin e da Nigéria, além de mais de 150 DVDs produzidos no Brasil sobre candomblé e umbanda. Técnicos do Arquivo Nacional já fizeram uma análise preliminar do material, e agora estão em andamento os trâmites burocráticos para incorporação dessa parte do acervo.
Para os técnicos e pesquisadores, incorporar novas fontes ao acervo ajuda a fornecer novas leituras da história do Brasil, e incorporar narrativas e vozes que por muito tempo permaneceram à margem dos registros oficiais.
“É importante frisar que isso faz parte da missão do Arquivo Nacional: receber e preservar documentos que contam a memória da nação. E o nosso objetivo é receber mais documentos de acervos comunitários, de pequenas sociedades e de colecionadores privados”, disse Mara Luci Araújo, responsável pela Coordenação de Documentos Escritos (Codes) do Arquivo Nacional.
“Temos um patrimônio documental de valor inestimável e a maioria dos brasileiros não o conhece. O mais importante no resgate e promoção desse acervo é mostrar para a sociedade que nós somos umbanda, candomblé, cristianismo e tantas outras identidades que precisam ser respeitadas e valorizadas”, finaliza.

