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Creche comunitária no Alemão vai da doação à criação de clube literário na pandemia

Colunista convidada da semana, Carolina Marinho fala da ideia da mãe de receber na casa delas filhos de moradoras do conjunto de favelas da Zona Norte do Rio

Carolina e a mãe mantêm a creche Recreação Infantil Estrelinha
Carolina e a mãe mantêm a creche Recreação Infantil Estrelinha -
Sou cria do Complexo do Alemão, filha de Rosangela Marinho e nascida na localidade da Grota. Minha mãe é primogênita de uma família de 10 irmãos e sempre se dedicou aos cuidados deles, assumindo a função de mãe precocemente.
Apesar de minha mãe ter assumido "o papel da maternidade" aos 11 anos, cuidando dos irmãos, ela só foi "mãe biológica" aos 27, após muito planejamento. Depois da gravidez, o meu nascimento e o fim da licença maternidade, ela ficou desesperada porque não tinha uma instituição ou uma pessoa que confiava para cuidar de mim e da minha irmã, para que retornasse ao trabalho.
Diante desta angústia, minha mãe passou a pensar que a falta de acesso às creches era um problema recorrente na vida das mães faveladas. Então, perante a este cenário, ela decidiu dedicar dois cômodos da nossa casa, na área 5, para atender às mães solos da comunidade, oferecendo o serviço de alfabetização e atividades pedagógicas para crianças de zero a seis anos, possibilitando que estas mulheres-mães pudessem retornar à rotina de trabalho e estudos, não restringindo a vida da mulher à maternidade.
Dona Rosangela abriu as postas de casa para receber crianças da comunidade - Arquivo Pessoal
Após um ano de trabalho, o sucesso foi imediato da Recreação Infantil Estrelinha, e já em 1990 se formavam filas enormes em nossa porta, de mães que pediam ajuda e vagas para seus filhos e suas filhas para que pudessem trabalhar tranquilas. Diante de tamanha procura, minha mãe decidiu dedicar toda nossa casa para receber as crianças da nossa favela. Também gerando empregabilidade e renda para muitas mulheres que atuam como colaboradoras em nosso projeto.
A nossa (re)existência sempre foi um desafio, já que criamos nossas trajetórias sob a perspectiva da ausência e não cedemos ao projeto de necropolítica governamental, que nos atinge em diversas esferas. A partir deste contexto, de ausências e falta de acesso à políticas públicas, criamos nossas próprias políticas.
E isto se evidenciou no período da pandemia do coronavírus que escancarou os abismos sociocracias em que estamos inseridos. Diante desta "dinâmica de novo normal", (re)criamos nossa (re)existência, isso porque nossa instituição foi muito impactada na pandemia, porque nosso espaço é mantido com a colaboração da própria comunidade e, neste momento, não podíamos contar com ajuda da comunidade.
Mãe e filha ajudaram a comunidade ainda mais durante a pandemia com doações - Arquivo Pessoal
Mesmo vivenciando dias terríveis, não fechamos nossas portas e iniciamos, desde abril, a distribuição de cestas básicas, frutas, legumes, preservativos, álcool em gel, cartilha de combate à violência doméstica e roupas. Inicialmente, estas doações eram para um grupo de 15 mães que perderam subitamente seus trabalhos no início da pandemia. Com o decorrer do tempo, o desemprego se alastrou em nossa comunidade e atualmente estamos atendendo 100 famílias que permanecem sem empregos.
Para além de alimentos, nossas cestas básicas vêm acompanhadas de um ingrediente especial: os livros. Mensalmente, distribuímos obras de literatura infantil para nossas crianças. Tivemos esta iniciativa porque não aderimos à educação à distância, porque na casa de nossos(as) alunos(as) não tem energia e Internet regular. Com o isolamento social, as crianças começaram a demonstrar alto índice de ansiedade e o estopim disso foi quando nosso aluno subiu no telhado para "brincar".
Diante deste cenário preocupante, minha mãe sugeriu que eu postasse em minhas redes sociais um pedido de ajuda sobre doações de livros e desenhos para colorir, a fim de promover um pouco de entretenimento para os(as) pequenos(as) na quarentena.
O escritor Otávio Júnior emprestou seu acervo pessoal para que fosse montado um clube literário na creche - Arquivo Pessoal
Após o post, o Otávio Júnior, escritor vencedor do prêmio Jabuti, conhecido como Livreiro do Alemão, entrou em contato comigo, falando se ele me emprestasse seu acervo pessoal, conseguiríamos administrar um clube literário no isolamento social.
Após esta proposta, aceitamos imediatamente e nosso clube literário vive. E foi batizado de Clube Literário Infantil Rosangela Marinho, em homenagem à minha mãe, que alfabetiza há 31 anos em nossa favela.
* O texto é de responsabilidade do autor.
Carolina e a mãe mantêm a creche Recreação Infantil Estrelinha Arquivo Pessoal
Mãe e filha ajudaram a comunidade ainda mais durante a pandemia com doações Arquivo Pessoal
Dona Rosangela e a pequena Carolina Arquivo Pessoal
A criançada adora o Clube Literário Infantil Rosangela Marinho Arquivo Pessoal
Dona Rosangela abriu as postas de casa para receber crianças da comunidade Arquivo Pessoal
O escritor Otávio Júnior emprestou seu acervo pessoal para que fosse montado um clube literário na creche Arquivo Pessoal

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