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Prisão do DJ Rennan da Penha esquenta o debate sobre a criminalização do funk

Marginalização da expressão cultural por setores da sociedade vai no sentido oposto à popularização crescente do ritmo musical, que permite a ascensão de jovens periféricos ao estrelato

Baile da Gaiola, na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio
Baile da Gaiola, na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio -

Rio - A prisão de Rennan da Penha, nesta quarta-feira, levanta a polêmica sobre um velho debate: a criminalização do funk. A marginalização da expressão cultural por setores da sociedade vai no sentido oposto à popularização crescente do ritmo musical, que permite a ascensão de jovens periféricos ao estrelato. O DJ deve ser transferido para Bangu 9 até amanhã.

Em 2017, um projeto de lei que criminalizava o funk foi encaminhado ao Senado. Na ocasião, a proposta foi rejeitada por unanimidade e a medida chegou a ser apontada como uma ofensa às liberdades individuais. Ao "Dia", Danilo Cymrot, doutor em criminologia pela Universidade de São Paulo (USP) explica, no entanto, que o processo de marginalização começou em meados dos anos 90 após uma briga em uma praia da Zona Sul, e foi se intensificando com o passar dos anos.

Na manhã desta quinta-feira, a Câmara dos Deputados, em Brasília, vai receber uma audiência pública sobre a criminalização do ritmo, com foco na prisão de Rennan, idealizador do Baile da Gaiola — um dos maiores do Brasil.

"A criminalização do funk se dá na medida em que a culpa, individual, é atribuída a toda uma cultura, estigmatizando o gênero musical como um todo e justificando a proibição de bailes, prejudicando o lazer e o trabalho de uma parcela da população que não tem nenhuma relação com a prática criminosa em questão", ressalta Cymrot. Confira a entrevista do doutor em criminologia ao "Dia".

O DIA - Em que momento o funk deixa de ser visto como um ritmo musical e passa a ser visto como um ato criminoso?

Danilo Cymrot - O processo de criminalização do funk tem início em outubro de 1992, quando uma briga de galeras rivais do subúrbio do Rio de Janeiro, que frequentavam bailes funk, é confundida pela imprensa e pela polícia com um arrastão nas praias de Ipanema e Arpoador. Apesar de os bailes black fazerem muito sucesso desde o início dos anos 70 no subúrbio, a elite cultural, política e econômica tomou contato com o funk pela primeira vez por meio desse episódio e dessa associação entre funk e baderna/arrastão.

O processo de criminalização se acentuou com denúncias de bailes nas favelas da Zona Sul, em 1995, que tocavam funks "proibidões" (que supostamente fazem apologia às facções criminosas), que eram supostamente financiados por traficantes, atrapalhavam o trânsito e o sono dos moradores vizinhos, por causa do barulho.

No mesmo ano de 1995 houve uma CPI municipal que proibiu esses bailes nas favelas, chamados de bailes de comunidade. Em 1999, por sua vez, houve denúncias de bailes de corredor em clubes do subúrbio carioca, em que as galeras se enfrentavam de forma violenta em uma espécie de corredor polonês. As denúncias geraram uma CPI estadual na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) que proibiu os bailes de corredor, levando os bailes novamente para dentro das favelas.

Funk em alta nas rede: vídeo de MC Livinho já foi visto quase 200 milhões de vezes - Reprodução

Nos anos 2000, o cenário mudou? Qual o impacto das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) no funk? 

Em 2002, o assassinato de Tim Lopes, no contexto de uma matéria investigativa sobre a venda de drogas ilícitas para menores em bailes funk, associou ainda mais o funk ao crime e à violência.

Desde 2008 a política das UPPs, mediante a exigência de inúmeros requisitos burocráticos, proibiu na prática a realização dos bailes. As razões alegadas para a criminalização são principalmente letras que supostamente fazem apologia ao crime, bailes que supostamente são financiados pelo tráfico, a presença de armas, o comércio de drogas e a prática de sexo entre menores de idade nos bailes.

Existe algum fator para a marginalização do funk?

Outras manifestações culturais da mesma parcela da população identificada com o funk— negra, pobre, jovem e moradora de favelas e subúrbios —também já foi criminalizada, como o samba e a capoeira, e que as práticas criminosas ocorrem independentemente da realização dos bailes e em outros espaços da cidade, frequentadas pelas classes sociais mais abastadas, denuncia-se que a verdadeira razão para a criminalização do funk é o racismo e o preconceito com um gênero musical que é visto como "pobre" e "chulo".

A criminalização tem a ver com quem canta ou sobre o que é cantado?

A criminalização tem a ver com quem canta e sobre o que é cantado ao mesmo tempo. Por um lado, outros gêneros musicais que fazem sucesso entre jovens, negros e pobres, como o gospel e o sertanejo, não são criminalizados. Por outro, artistas de outros gêneros musicais que não o funk, que também cantam letras que retratam o comércio de drogas e a violência policial, como artistas de MPB e rap, não são tão criminalizados como os artistas de funk, por serem mais respeitados e legitimados por instâncias como a imprensa e a elite intelectual.

Porém, quando o funk é criminalizado, não é apenas o gênero "proibidão" que é perseguido, mas também, por tabela, demais gêneros que não fazem apologia à violência e às facções, como o funk romântico, o funk ostentação e o funk "putaria".

Rennan da Penha durante apresentação - Reprodução Instagram

O DJ Rennan da Penha foi preso e o Baile da Gaiola foi proibido. Os casos são exemplos de criminalização do funk?

O caso pode ser de criminalização do funk se não se comprovar que o DJ Rennan se associava a uma facção criminosa. Ser amigo de traficantes ou ouvir funk "proibidão", por exemplo, não é crime. Da mesma forma, não se pode exigir de um artista que se responsabilize pela origem lícita do dinheiro utilizado para pagá-lo ou pela prática de atos criminosos, como o comércio de drogas ilícitas, nos lugares onde se apresenta.

Por outro lado, mesmo se, em tese, for provada a associação ao tráfico, a criminalização do funk se dá na medida em que a culpa, individual, é atribuída a toda uma cultura, estigmatizando o gênero musical como um todo e justificando a proibição de bailes, prejudicando o lazer e o trabalho de uma parcela da população que não tem nenhuma relação com a prática criminosa em questão.

Entre 2010 e 2013, cinco MCs foram assassinados em São Paulo. O caso do MC Daleste — morto durante um show — não foi solucionado. O mesmo estado que criminaliza, não soluciona os crimes contra esses jovens? 

No Brasil, o índice de resolução de casos de homicídio é considerado baixo. Além de recursos humanos, financeiros e tecnológicos, pode faltar também vontade política para investigar determinados casos, em virtude da posição social dos suspeitos ou da vítima. Sem me ater ao caso concreto do MC Daleste, diria que de fato a parcela da população mais estigmatizada como criminosa e violenta- jovens negros, pobres, moradores de favelas e periferias- é, na realidade, a maior vítima da violência no Brasil, inclusive da letalidade policial, conforme mostra o Atlas da Violência.

A morte desses MCs é um fenômeno, portanto, que transcende a criminalização do funk. Antes de mais nada, eram jovens e negros. Sua morte, no entanto, é naturalizada ou encarada como destino inafastável de quem se envolve com algo considerado criminoso, como o funk. Nesse sentido, verifica-se a culpabilização da própria vítima, o que pode diminuir a pressão social para que os casos sejam devidamente investigados e solucionados.

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Rennan da Penha Divulgação