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Lis MC retrata a favela com o rap e canta pelo empoderamento: ‘Mulher não serve só pra fazer música de amor’

Cantora, modelo, poetisa e empresária, rapper é cria do Complexo da Penha e já morou no Complexo do Alemão

Lis MC também morou no Complexo do Alemão
Lis MC também morou no Complexo do Alemão -
A música pode ser muitas coisas, mas para Lis MC, é um forma de trazer à tona a vivência de quem veio da favela. Isso, porque além de ter nascido na Vila Cruzeiro, comunidade do Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio, por ser filha de pais separados, a rapper cresceu vivendo também no Complexo da Alemão. Com letras fortes e de mensagem direta, a jovem de 24 anos, que é cantora, poetisa e empresária, vem conquistando o seu espaço no rap, gênero que não para de crescer no Brasil.

"Sou cria da Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha. Nascida em casa, inclusive, aos 8 meses. Minha infância, em parte, não foi na Vila Cruzeiro. Pouco tempo depois que eu nasci, meus pais se separaram e eu fui morar com a minha mãe e minha avó no Complexo do Alemão. Minha infância foi de boa, considerando tudo o que acontecia ali ao meu redor, e o que eu via quando tinha ali uns 7, 8 anos, foi bem tranquila. Eu ia pra escola, fazia um projeto de capoeira na Vila Olímpica da Grota. Minha vó e minha mãe me mantinham bem ocupada. Eu frequentava a escola sem falta nenhuma. Sempre foi bem tranquilo conviver na favela, porque era natural pra mim."

Mesmo acostumada com as situações que eram comuns nas favelas que viveu, Lis citou as principais dificuldades que enfrentou por morar em comunidade.

"A principal é a mobilidade, que sempre foi muito ruim. Por exemplo, depois que meus pais se separaram, eu morava no Complexo do Alemão, mas estudava em Olaria. Como eu morava muito pra dentro do Alemão, eu tinha que andar de lá da Matinha, que era bem pra trás, até o ponto de ônibus que era na entrada da Grota, na Av. Itaóca. Então eu vinha de dentro da favela até o ponto lá fora, pra poder pegar um ônibus. E apesar de serem bairros perto, a distância para ir andando não era boa. Não tinha muitos meios de transporte mesmo. Era o único jeito", lembrou ela, citando também a falta de projetos sociais.

"O que me ajudou muito a não ser uma criança desocupada foi o projeto de capoeira, na Vila Olímpica. E eu sinto que se tivessem mais projetos que oferecessem esporte de graça pra gente, porque a gente não tem condições de pagar mesmo, eu acho que seria muito mais fácil para outras crianças se ocuparem."
Lis MC retrata a realidade da favela através do rap - Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Apesar dessas dificuldades, Lis conta que a vivência na favela também trouxe muitas coisas boas.

"O que eu pude tirar da minha experiência de ser uma moradora de favela é viver em coletivo. É aprender a dividir. Minha casa sempre estava cheia de pessoas. Sempre morei com muita gente. Minha família é muito grande, tanto por parte de pai, quanto de mãe. Eu sempre tive muito na rua também e sempre gostei de rodas culturais. Então acho que a vivência na favela traz, principalmente, o senso do coletivo. É a primeira coisa que a gente aprende."

Rapper, compositora, poetisa, modelo e empresária, a MC lembrou como a música entrou na sua vida.

"Eu sempre gostei muito de Vídeo Traxx, hip-hop e os sons lá de fora. Sempre ouvi muito mais rap também. Então eu acho que já tava destinada a pelo menos gostar desse gênero. E eu comecei a fazer música em 2019, por meio dos meus amigos. Eu já organizava rodas culturais, fazia poesias. Eu sempre escrevi poesia, mas não expunha elas. E os meus amigos tiveram a oportunidade de gravar no estúdio do MC Copinho, que é na Penha, nessa época eu já morava lá no Complexo da Penha de novo. E eles tiveram a oportunidade de gravar no estúdio e eu fui com eles. Só que até então eu nunca tinha feito música profissionalmente. A gente tirava no máximo uma voz e violão na praça. Aí rolou essa oportunidade, a gente se juntou e eu percebi que tinha achado algo que realmente me identificava", contou ela, explicando também a preferência pelo rap.

"É porque eu acho que minha vivência e o que eu sinto não cabem em outro gênero. Tem que ser o rap."

A artista também falou sobre o impacto que crescer na favela teve no seu jeito de fazer arte.

"Impactou a minha arte com o peso. Todo o peso que eu vi, durante toda a minha vivência, como criança, adolescente e adulta, foram coisas pesadas. E isso me trouxe um peso natural. Na fala, no jeito de agir… Eu acho que ser de favela traz esse peso. Mas não que seja um peso ruim, mas a gente retrata e sente as coisas com mais peso. Eu acho que na minha música e na minha vivência isso tá muito presente."
Lis MC é da nova geração do rap - Foto: Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Dona dos hits Bad Bitch e Nike Air, Lis explicou o processo de criação de suas letras, que em muitos casos retratam a realidade vivenciada por ela.

"Eu gosto de retratar o que eu vi e vejo desde sempre. Porque as pessoas têm uma visão do morador de favela estereotipada. Por exemplo, de que todo menininho de favela, preto, vai virar traficante, porque ele acha maneiro. Ou porque ele acha que o bandido é herói. Sendo que na real, muitas vezes o tráfico salvou a vida de muitas pessoas e alimentou muitas famílias. É uma controvérsia gigante. Porque o mesmo tráfico que condena e mata famílias, também salva vidas e alimenta pessoas, como já me alimentou. São lados da moeda que as pessoas não costumam olhar. Elas criam o estereótipo pra si, levam isso pra vida e definem o favelado assim. É sempre bom a gente retratar isso. Assim como a gente mostra esse lado, a gente retrata o outro", contou ela, citando como exemplo a sua música Outro Patamar.

Eu falo: "Mulher de patrão. Malotin na mão. E o tipo de Barbie. Que algumas quer ser." Tem realmente mulheres na favela, que são doutrinadas, que crescem querendo ser mulher de bandido, porque acham que aquilo é a salvação. Que é um meio digno que elas vão ser valorizadas e amadas. E não é isso que acontece de fato em muitos casos. Claro que existem homens que realmente cuidam dessas mulheres, que mesmo sendo traficantes são pais de família. É muito estranho isso, mas acho que é uma obrigação retratar o que a gente vive. E o que eu vivo é isso. A minha vida inteira eu vi meninas que achavam que ser mulher de traficante era uma coisa boa. Que era uma meta de vida. E explicar, botando isso numa música, talvez as pessoas ainda não entendam, mas isso vai fazer elas pensarem e ver o outro lado da moeda."

Lis MC ressaltou a importância do rap para denunciar os problemas enfrentados por quem vive na favela.

"Retratar a realidade da favela é a função do rap. O rap é de protesto. Tá aí pra expor mesmo a ferida social. E retratar a sua vivência e a mazela da favela, é essencial pra que a gente possa melhorar isso. Pra que a gente possa mudar a visão do mundo pra favela e mudar o funcionamento dela. Mostrar a sonegação que o governo faz com a favela, é a obrigação de quem tá no rap. Então, acho que expor a minha vivência é nada mais do que o gênero pede. É a minha obrigação. Pedir mais respeito, mais saneamento básico. Pedir pelo menos o mínimo, porque nem isso a gente tem."

Mesmo com as mulheres ganhando cada vez mais força no rap, Lis acredita que ainda falta reconhecimento. A rapper opinou sobre o que causa isso.

"Primeiro de tudo, é o machismo estrutural que a gente tem no Brasil. Segundo, que as pessoas têm muito isso de que a mulher só pode cantar e fazer músicas doces. Que só assim ela é uma boa cantora. Ainda não tão acostumados a ver uma mulher com conteúdo mais forte. E tem também a parada de a mulher só vai subir se ficar com fulano ou sicrano. Então tem muito isso dos caras tentarem se aproveitar. Esse: eu te ajudo se você ficar comigo. O apagamento feminino na cena é nítido. Por tudo isso. E pelo fato dos caras simplesmente não aceitarem que mulheres podem ser até melhores do que eles", analisou ela, opinando sobre o que pode ser feito para que a cena do rap feminino se fortaleça ainda mais.

"Eu acho que a gente não tem que provar nada. A gente só tem mesmo é que fazer o que a gente já tá fazendo. Ter qualidade nas paradas. Você não precisa ter um super vídeo clipe pra lançar um som. Você pode lançar um single bom só com uma capa. Manter a qualidade mesmo. É ter planejamento, fazer uma parada bem pensada. Não tem que necessariamente ser um hit. Assim como o pouco espaço que a gente vem ganhando, temos potencial pra conseguir muito mais. E também mostrar que mulher não serve só pra fazer musiquinha de amor. Ou só pra fazer refrão em música de homem. Serve sim pra fazer hitzão, pode sim falar putaria. Pode sim falar de tráfico, de vivência e de favela. Assim como qualquer outro homem na cena do rap e em outros gêneros", disse ela, pedindo também mais união entre as mulheres.

"E também acho que podemos nos unir mais. É uma hipocrisia eu falar que mulher não pode ter rivalidade feminina no rap. Seja homem ou mulher, se eu não gostar da pessoa, eu não vou escutar o som dela ou me unir pra fazer algo. Mas tô falando em se unir mesmo, pra fazer um trabalho de qualidade. Conhecer a pessoa além da artista. Acho que se a gente se juntasse mais pra fazer colaboração seria algo que alavancaria o cenário feminino no rap."
Lis MC também organiza e canta em rodas culturais - Foto: Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Com o gênero na moda, surgem cada vez mais pessoas cantando rap. Diante disso, Lis deu seu ponto de vista do que pode ser feito para se destacar diante de tanta gente.

"Você tem que estudar. E não é só sobre meter a cara no livro ou fazer uma aula de música, porque nem todo mundo tem condição de fazer isso. É sobre pesquisar. Tem vídeo no YouTube que vai acrescentar na sua carreira? Vai ver. Viu um novo gênero? Vai estudar, pesquisa no Google de onde ele vem, como é feito. E também sobre manter a originalidade. Como é moda, todo mundo quer fazer e fazer mais do mesmo. Eles querem imitar algo que já está em alta. E se você é original, se você faz a tua parada, você tem mais chance de ter destaque. É como o trap, que é um dos subgêneros do rap. E eu percebo que tem muita gente que faz trap, achando que trap e rap são coisas completamente diferentes."

Sem se rotular em apenas uma coisa, Lis também falou sobre como surgiu o seu lado empresária.

"É algo que eu tô aprendendo, tá em construção. Antes de eu ter uma produtora, que atualmente é a VTZ, eu mesma distribuía minhas paradas. Eu ia atrás de parceria, cadastrava meus sons nas plataformas. Agora eu tô montando meu próprio estúdio pra poder ensinar outras pessoas a fazerem isso. A fazer o que eu aprendi sozinha. E hoje eu estudo mais isso, sobre distribuição de música e marketing, pra que eu possa até trabalhar na área. Distribuir, cadastrar e também ganhar com a música de outras pessoas. E assim, também ensinar outras pessoas a se virarem sozinhas, como eu fiz no meu começo de carreira."

Por fim, a rapper contou em primeira mão algumas novidades que em breve estarão na pista.

"Tem bastante projeto guardado. Eu tava esperando a finalização de mixer e master de umas guias que estavam prontas e agora elas já estão finalizadas. E a gente tá fazendo o planejamento de cada uma pra poder lançar. A que tá mais perto de sair é Chutação de Balde, que é um trapzão bem pesado, com produção do Mal Beats. E a gente gravou o vídeo clipe dela no bairro da Liberdade, em uma viagem de trabalho em São Paulo. É um som com um beatzão bem oriental, então puxar toda essa estética pra Liberdade veio muito a calhar. Um trap bem com a minha cara, bem pesado, bem estética real e favela, que eu tenho certeza que as pessoas vão gostar à beça. Fora isso, também tô planejando alguns feats (parcerias) bem maneiros. Já tem algumas coisas finalizadas que estão entrando no planejamento de vídeo clipe, pra gente poder ir lançando", finalizou.
Lis MC é cria do Complexo da Penha - Divulgação
Lis MC também morou no Complexo do Alemão Divulgação
Lis MC também organiza e canta em rodas culturais Foto: Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Lis MC é da nova geração do rap Foto: Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Lis MC tem 24 anos Foto: Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Lis MC tem 24 anos Foto: Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Lis MC lançará em breve a música "Chutação de Balde" Foto: Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Lis MC é modelo, rapper, poetisa e empresária Foto: Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Lis MC retrata a realidade da favela através do rap Divulgação / Matheus Rodrigues / VTZ Studio
Lis MC é cria do Complexo da Penha Divulgação

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