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Kaê Guajajara usa a arte para dar voz aos indígenas e combater preconceito: ‘Eu passava e as pessoas faziam barulho com a boca’

Nascida no Maranhão, artista veio para o Complexo da Maré na infância e enfrentou as dificuldades de ser uma indígena em contexto urbano

Kaê Guajajara nasceu em Mirinzal, território indígena não remarcado pela Funai no Maranhão
Kaê Guajajara nasceu em Mirinzal, território indígena não remarcado pela Funai no Maranhão -
Kaê Guajajara é rapper, atriz, escritora, ativista, mas acima de tudo é uma sobrevivente. Aos oito anos de idade, teve que deixar Mirinzal, território indígena não demarcado pela Funai no Maranhão, para vir morar no Complexo da Maré, na comunidade Nova Holanda, Zona Norte do Rio. Hoje, aos 28 anos, ela utiliza sua arte para dar voz aos povos indígenas, combatendo o preconceito e lutando diariamente pelo reconhecimento das culturas dos povos originários do Brasil.

Filha de mãe Guajajara e pai não indígena, Kaê contou o que a fez se mudar para a Maré.

"Foi a escassez, a pobreza no território e principalmente as violências. Porque lá [Mirinzal] tem muito madeireiro, e isso gera muitos conflitos, fora outras violências. Resumindo, foi por causa da falta de política pública e a segurança que não existe lá."
Kaê Guajajara é autora do livro "Descomplicando com Kaê" - Foto: Abimael Salinas
Tendo que se adaptar à experiência de ser uma indígena em contexto urbano, Kaê contou quais foram as suas principais dificuldades.

"A primeira dificuldade foi ter que me adaptar aos códigos de convivência da cidade. Antes eu tinha uma alimentação, não usava muita roupa. Aqui, eu tive que aprender a usar sutiã, a botar sapato. Não era uma preocupação minha, até porque eu era criança, mas eu tive que aprender na marra esses códigos. Fora os preconceitos das pessoas. Eu passava e as faziam barulho com a mão na boca [tirando sarro]. Ficavam falando: Índia, você nem existe. Você mesmo não é índio original", dizendo que eu deixei de ser indígena por ter trocado de endereço."

Kaê Guajajara relatou quais foram os impactos que a vivência na Maré trouxe para a sua forma de fazer arte.

"Foi isso de enxergar a vida pela margem. Eu saí de um território não demarcado, fui morar em outro território não demarcado, que é a favela, e eu pude perceber que eu estou vivendo numa margem. Quem vive na margem, sabe o impacto que isso carrega. É a margem do Brasil, sabe? São várias violências, racismo, preconceitos, até racismo estrutural, que é aquele que o Estado age com as próprias ferramentas e políticas contra essas vivências, de indígenas e pretos. E acho que foi esse impacto de sobreviver na margem que fez eu falar sobre essas vivências, sobre essa existência, através da música, do rap."

A artista falou também sobre a importância da mãe no seu processo de imersão na arte.

"A arte entrou na minha vida muito cedo, pela minha mãe que já cantava, só que ela não canta mais hoje em dia. Aí eu canto tentando fazer com que a gente exista através das minhas músicas. E eu sou a primeira mulher indígena a ter um reconhecimento mínimo, a ter um impacto, a ser uma referência para as outras meninas indígenas que estão nas favelas e aldeias. Eu recebo muitas mensagens lindas de crianças e adolescentes que se inspiram. Coisa que eu não tive, não tive essa representatividade na música, no rap, na arte, quando eu era menor. A única coisa pra mim era a Tainá, lá no filme", citou ela, lembrando do filme lançado em 2000, explicando na sequência, que a música foi a sua porta de entrada para as artes.

"Depois da música que eu fui pelo caminho de atriz, apesar de não ter tido muitas oportunidades, eu gosto muito de atuar. Gosto muito de dançar também. Nos meus shows você pode ver isso. Eu cantando e dançando. É bem legal."
Kaê Guajajara tem mais de 100 mil seguidores no Instagram e quase 90 mil no Tik Tok - Foto: Rafaela Araújo e Vitória Guilhermina
Falando sobre música, foi no Complexo da Maré, que durante a adolescência, ela fez parte de uma banda de rap chamada "Crônicos".

"Eram dois amigos meus angolanos, e mais alguns outros que tocavam. A gente se juntou dentro da Associação de Moradores e fizemos várias músicas juntos. Cantamos em várias rodas culturais no Rio, e foi daí que eu comecei a cantar no beat, que eu comecei a cantar alguns raps."

Sobre viver no contexto urbano, Kaê citou algumas dificuldades enfrentadas pela sua mãe, que se afastou de suas origens em um determinado momento, por conta do medo e do preconceito.

"Por muito tempo ela ficou tentando se encaixar, se embranquecendo. Porque aqui na cidade não é bem visto ser indígena. As pessoas querem sempre jogar a gente numa caixinha que elas imaginam na cabeça delas. Eles falam: "Volta pro mato". Aí você fica pensando: "Caramba, o mato que eles tão falando é aqui. A gente tá no nosso território, as outras pessoas que não estão." Entendeu? Hoje em dia minha mãe tá muito melhor. E ela se fortaleceu bastante depois que eu vim como a justiceira, falando que eu não quero fingir ser outra coisa. E ser eu mesma é um grande ato de coragem hoje no Brasil, que mais quer que os nossos indígenas sejam extintos, para que toda essa colonização e essa independência que eles tanto comemoram, seja efetiva. Eles ainda não sabem como lidar com nós indígenas que sobreviveram à colonização. E a gente hoje tá vivendo nas margens. Tanto com aldeias não demarcadas, territórios não demarcados e favelas nas cidades também."

Kaê também opinou sobre a origem do preconceito e da desvalorização cultural dos povos indígenas.

"Essa ignorância se deve ao próprio Estado. Imagina, a gente tá aqui, num território originário indígena. Aí chegam e colonizam tudo, a gente fica aqui e ainda sobrevive, vários povos diferentes. E hoje nas escolas, a gente vê a narrativa do colonizador, dizendo que o Brasil foi descoberto, que foi uma independência, que todos nós devemos comemorar, que tudo deu certo. Sendo que deu tudo certo pela narrativa do colonizador. Porque pra gente foi invasão, foi genocídio, foram mortes dos nosso familiares, foi etnocídio, foi proibição da língua, proibição de usar nossos verdadeiros nomes. Foram várias violências, e que a gente, hoje em dia, faz um trabalho dentro da estrutura. Então, nós vamos nas escolas dizendo toda a verdade do nosso ponto de vista: que foi uma invasão. Que o Brasil precisa reparar os povos originários, e principalmente saber que nós existimos, que a gente não é só uma lenda da floresta."
Kaê explica que essa ignorância é refletida também no Carnaval, época em que diversas pessoas costumam utilizar fantasias que fazem referência aos indígenas.

"Isso também está relacionado com a visão colonial que é passada nas escolas e fora delas para as pessoas. Por conta disso, quando elas crescem têm essa atitudes, porque elas não aprenderam a respeitar. Então, fica só naquele estereótipo mesmo, de ficar zoando e diminuindo a nossa inteligência falando: "Mim ser índio". Falar um monte de coisas que diminuem a nossa dignidade. Essa forma que eles falam é ignorante, porque eles acham que estão homenageando, quando na verdade o que a gente queria é que eles fizessem muito mais, em questão de ativismo e de estar junto na luta. Isso me gerou até um tema de música, que é "Essa Rua é Minha", um funk que eu falo justamente dessa coisa de fantasia do carnaval. O Brasil, hoje, aos poucos, tá entendo que é racismo ficar se pintando de preto, botar peruca, ficar zoando e sendo preconceituoso com os pretos. Aí, quando é com nós indígenas, do nada vira homenagem. Como que com um grupo é desrespeitoso e com o outro não é? É justamente porque eles acham que a gente não existe, que a gente é uma lenda. Que a gente não é um ser humano que tá existindo aí no dia a dia com eles."
Para combater os preconceitos com a cultura dos povos originários do Brasil, a ativista lançou o livro "Descomplicando com Kaê", confrontando os livros de história desatualizados.

"Muitas pessoas, depois que eu ganhei um pouco de visibilidade, começaram a me procurar querendo que eu falasse, querendo saber mais, querendo que eu fosse nas escolas. Aí eu juntei vários parentes, de mais de dez etnias, para traçar uma linha de pensamento. Somos vários, somos muitos em questão de diversidade, um povo é diferente do outro e vai ter uma visão diferente também. Então, eu juntei todo mundo pra que a gente alinhasse uma visão, pra passar pros nãos indígenas, a fim de desconstruir essa visão colonizadora que todo mundo aprendeu a vida inteira na escola."

Kaê Guajajara citou, também, alguns dos principais erros cometidos pelos não indígenas ao abordar a temática.

"Ficar achando que a gente é uma lenda, que a gente é um mito, que hoje não existem mais indígenas. Ou então falar que o indígena tá só no mato, tá só na aldeia. Chamar a gente de índio, sendo que o certo é indígena. Índio remete a um "erro náutico" do colonizador, que chamou a gente de índio, e mesmo depois de ver que não éramos os índios que ele estava pensando, e que éramos bem diferentes uns dos outros, ele generalizou numa palavra que não nos define. Outra palavra é "tribo", a gente fala aldeia, território. Tribo é uma palavra arcaica, como se a gente não evoluísse. Tipo: "Tá ali, é uma tribo. Eles são pobres e arcaicos". Os povos indígenas utilizam tecnologias e táticas de sobrevivência para manter o pouco da biodiversidade da floresta que ainda resta. Somos os únicos que protegem tanta natureza, enquanto os colonizadores só querem comer a terra e sugar tudo o que nela tiver. Outro erro é dizer que nós indígenas somos todos iguais. Não é o povo indígena, somos os povos indígenas. Hoje são mais de 300 povos, com línguas diferentes, culturas diferentes, vivendo em lugares diferentes e com pensamentos diferentes. E isso, às vezes, choca as pessoas."

Ainda sobre seu ativismo, Kaê falou sobre o momento em que decidiu que usaria a arte para defender os povos indígenas.

"Eu decidi quando eu tinha 16/17 anos. Eu estava na minha crise de identidade do adolescente e pensando que eu não tinha como continuar fingindo ser outra coisa. Então eu pensei: "O que eu posso fazer para que minha vivência como indígena seja mais confortável, num território roubado? Eu preciso jogar o jogo deles. Preciso fazer com que a gente exista. Preciso correr atrás de políticas públicas, que é o que não existe aqui". Então, isso me atentou a expor tudo, para que muitos de nós também se levantem, nesse sentido da arte, para que a gente possa chamar atenção, principalmente para as políticas públicas que não existem nas cidades e nas favelas. Elas só existem dentro da aldeia demarcada pela Funai, e muito mal executada. É justamente a fim de matar a gente. Porque mesmo quando tem uma demarcação na terra, que é o caso dos Ianomâmis, a gente perde por conta dos avanços dessas violências, dos agronegócios, das barragens. Então todos os territórios do Brasil são perigosos para os indígenas viverem."
Kaê Guajajara é rapper, atriz, escritora, ativista - Foto: Abimael Salinas
Com mais de 100 mil seguidores no Instagram e quase 90 mil no TikTok, a artista falou sobre a importância das redes sociais como pontes para passar sua mensagem.

"Hoje em dia, o virtual é muito importante para nós povos originários, porque faz com que essa mensagem chegue para mais pessoas. Eu poderia tá falando só aqui nas escolas, mas eu tenho mais de 100 mil seguidores, então a mensagem de que nós estamos vivos consegue chegar em muito mais pessoas. Que a causa indígena não é só nossa, afinal todos estão pisando em território roubado, e quem não faz nada com a gente, ajudando, apoiando, está sendo conivente com o colonizador. Tá sendo cúmplice de um roubo, de um território roubado, onde tá todo mundo morando e vivendo a vida normal. E só quem tá se ferrando são os povos originários, com relação ao território. E morando na favela a gente vê que as pessoas também sofrem esse mesmo problema do território. E são pessoas que vivem nas margens, pretos, pobres e indígenas, que estão aí tentando sobreviver."
Mãe da pequena Diana, Kaê contou como faz para transmitir para filha a sua vivência e a história do povo Guajajara.

"A Diana cresce junto com as crianças e a comunidade da Aldeia Maracanã. A gente se mudou pra bem pertinho perto de lá, e ela tá convivendo, tá trocando ainda mais. Aqui em casa, elas faz cantos tradicionais. Ela brinca com as amigas Guajajaras também. Não tem isso de só poder acessar a cultura do seu povo em território demarcado. Como você faz pra sobreviver? Onde eu estou, onde minha família está, o meu coletivo está, existe toda essa troca, essa cultura. Então, a gente continua fazendo a mesma coisa mesmo estando na cidade. A gente ainda está em território indígena. Mesmo que eu me mude, a minha família vai estar comigo e eu vou poder levar à frente o legado para os meus filhos. A história do nosso povo não fica presa ao território demarcado, ela caminha junto com a gente, é a nossa identidade. É uma identidade coletiva, que está atrelada a todo o nosso povo. Só depende da gente, da nossa família, do nosso coletivo, da nossa aldeia".

Entendendo melhor as questões de gênero, Kaê pôde se reconhecer como uma pessoa não-binária.

"Pra mim foi muito importante para me conhecer. Eu sempre falava que era uma pessoa fluida, não sabia muito esses termos que falam na cidade. Aí depois fui entender esses termos e ver que existia o "não-binária", que é quando você não se enxerga nem como um, nem como outro. Então, isso foi muito importante, porque eu não tinha noção que esses nomes existiam. É muito legal poder falar "agora eu sou isso aqui". As pessoas sempre falavam "você é só mulher", mas isso é uma leitura social. E a gente não pode ficar se medindo pela leitura social, que é uma armadilha colonial. Porque o que nós somos mesmo, é a gente que precisa dizer."

A artista também explicou o que é o Coletivo Azuruhu.

"É um selo de artistas indígenas de diferentes realidades. Essa ideia veio de mim e do meu companheiro Kandú Puri. A gente criou esse coletivo pra tá trocando e estendendo essas ferramentas que vamos conseguindo para outros indígenas, de outras realidades. Por exemplo, estamos com o projeto "Voa Parente", que vamos até os lugares em que os artistas indígenas, que estão surgindo não têm as ferramentas, não têm o conhecimento burocrático de registrar uma música e fazer essa parte. Aí a gente que tá na cidade, tá na favela e entende um pouquinho mais, cria oficinas, alinhado com outros artistas indígenas, pra passar toda essa mensagem e preparar eles para se lançarem e denunciarem toda as violências que passam, cada um na sua vivência, cada um no seu território. Então a gente vai ter artista indígena que é de territórios demarcados, que é da favela ou da cidade. A gente faz online para alcançar mais pessoas."

Com tantos anos de luta dedicados à causa dos povos indígenas, Kaê Guajajara falou sobre o que mais se orgulha em sua trajetória.

"Que eu pude ser uma referência, uma inspiração para outras meninas indígenas que assim como eu, estavam sem referências. E ver todo esse carinho, todo esse apoio me traz muita felicidade. Eu me orgulho muito de tá viva vendo isso, porque se dependesse do Estado, eu estaria morta. Essa nossa sede de justiça faz com que a gente não fique quieto mesmo, e fique inconformado com o fato de todo brasileiro tá vivendo tão confortavelmente bem, em cima de um território roubado. Nem tão confortável porque sei que muita gente não gosta de um ou outro governo que entra ou sai. Mas pra gente entra governo e sai governo, e a nossa questão continua a mesma. A gente continua sem autonomia real para poder lidar e fazer todas as coisas que abrangem todas as realidades indígenas, e não só o que eles querem, que é dizer: "É só nesse território demarcado que vocês podem ficar. Se vocês forem para outro lugar, vocês não são mais indígenas". É isso que eles querem. Mas como a gente não fica quieto, a gente invade muitos pensamentos pra tá desconstruindo essa ideia colonial."
Kaê Guajajara se reconhece como uma pessoa não-binária. - Foto: Thamyres X. Andrade
Por fim, a cantora falou sobre seus principais projetos para 2022, celebrando o sucesso do seu último álbum lançado.

"Para 2022, a gente tem a turnê do Kwarahy Tazyr, que foi o álbum que eu lancei em 2021, e também o álbum visual dele. Já lançamos o primeiro clipe "Por Dentro da Terra", no ano passado, e esse ano vai o restante dos clipes completando o lançamento do álbum que fiz falando da minha vida, cantando na minha língua e em português também. Tem até inglês nesse álbum. Esse ano vai ter algumas parcerias, colaborações com artistas que estão na pista também.", finalizou.
Kaê Guajajara nasceu em Mirinzal, território indígena não remarcado pela Funai no Maranhão Foto: Abimael Salinas
Kaê Guajajara é rapper, atriz, escritora, ativista Abimael Salinas
Kaê Guajajara é autora do livro "Descomplicando com Kaê" Foto: Abimael Salinas
Kaê Guajajara lançou em 2021 o álbum Kwarahy Tazyr Foto: Abimael Salinas
Kaê Guajajara veio morar no Complexo da Maré com oito anos de idade Foto: Abimael Salinas
Kaê Guajajara é fundadora do Coletivo Azuruhu Foto: Rafaela Araújo e Vitória Guilhermina
Kaê Guajajara citou alguns dos principais erros cometidos pelos não indígenas ao abordar a temática Foto: Rafaela Araújo e Vitória Guilhermina
Kaê Guajajara tem mais de 100 mil seguidores no Instagram e quase 90 mil no Tik Tok Foto: Rafaela Araújo e Vitória Guilhermina
Kaê Guajajara se reconhece como uma pessoa não-binária. Foto: Thamyres X. Andrade

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